“Mais uma vez a classe média se achatou”, diz economista Marcelo Neri


O economista Marcelo Neri, da Fundação Getulio Vargas Social (FGV Social), no Rio de Janeiro, é a principal referência no Brasil quando o assunto é desigualdade. Discípulo de outros grandes nomes que se debruçaram sobre o assunto, como Carlos Langoni, Edmar Bacha e Albert Fishlow, há 35 anos ele estuda as disparidades na distribuição da riqueza na sociedade brasileira.

Em seu último estudo, o “Mapa da Riqueza” no Brasil, as conclusões não foram animadoras. O economista constatou que a desigualdade não diminuiu no país durante a pandemia, como muitos especialistas imaginavam. Pelo contrário. Ele aumentou. Também ajudou a achatar ainda mais a classe média brasileira em dificuldades. Como isso aconteceu? É o que Neri explica a seguir, em entrevista ao metrópole.

Em seu último estudo, você mostra que a desigualdade aumentou no país durante a pandemia. Como isso aconteceu?

Nesse período, a renda dos 40% mais pobres foi preservada pelo auxílio emergencial. Na verdade, até aumentou. Em 2020 cresceu 0,2% em relação ao ano anterior. Por outro lado, a renda dos mais ricos diminuiu, mas apenas ligeiramente. A queda foi de apenas 1,5%. Assim ocorre que a renda da classe média, que representa metade da população brasileira, caiu 4,2%. E isso teve um impacto enorme.

O aumento da renda dos mais pobres, ao contrário do que muitos economistas imaginavam, foi suficiente para reduzir a desigualdade?

Não era. Em condições normais, se os ricos perdem e os pobres ganham, teoricamente a desigualdade diminui. Não que isso seja bom em termos de bem-estar, mas diminui. Mas no caso brasileiro tem havido esse forte achatamento da classe média. E jogou uma parte da população para um dos extremos de renda. Neste caso, do lado dos mais pobres.

O que mais pesou nesse achatamento?

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Os mais pobres tinham Auxílio Emergencial (nome do programa de transferência de renda, em 2020). O valor foi de R$ 600,00, mas segundo nossas estimativas, o benefício médio foi de R$ 900,00 por família de baixa renda. Os mais ricos perderam um pouco, mas têm patrimônio, patrimônio. A classe média não tem proteção social nem os benefícios da riqueza. Portanto, foi o grupo mais afetado negativamente. E já havia sido esmagado por outras crises.

Desde a crise de 2014-2015, por exemplo?

SIM. Entre 2003 e 2014, as camadas mais pobres ganharam em termos de renda e a classe média teve mais pessoas vindas das camadas mais baixas. Com isso, essas pessoas adquirem novos hábitos. Colocam os filhos em escola particular, fazem plano de saúde, compram carro. Com o outono de 2015, veio a sensação de empobrecimento. Perder hábitos é um processo doloroso. Aí veio a pandemia. Foi, portanto, uma sequência de crise após crise.

Pode-se dizer que foi uma década perdida para a classe média?

SIM. A crise começa no final de 2014 e estamos em 2023. E vale lembrar que, durante a pandemia, as mulheres foram particularmente afetadas. Muitas delas acabaram tendo que cuidar de casas, com filhos sem aulas. Eles reduziram o trabalho ou até abandonaram seus empregos. Em ambos os casos houve queda na renda.

E qual foi o aumento da desigualdade no Brasil durante a pandemia?

Para medir a desigualdade, o mais comum é aplicar um índice chamado Gini, que varia de 0 a 1. Quanto mais próximo de zero, menos desigual é a sociedade analisada. Perto de 1, acontece o contrário. Este é o ápice da desigualdade. No Brasil, tivemos um indicador de 0,6013. Nossa pesquisa mostrou que é 0,7068. Quero dizer, é muito maior. Até porque cada 0,03 de Gini representa uma grande mudança, um grande salto.

Quão grande é essa mudança?

Gini se move pouco. No Brasil, por exemplo, manteve-se no mesmo patamar entre 1960 e 2001. Houve oscilações, mas pequenas. O gráfico do indicador foi comparado com um eletrocardiograma de uma pessoa falecida. Assim, a diferença de 0,6013 para 0,7068 é um triplo salto de desigualdade. Estas são três grandes mudanças. Além disso, 0,7068 é o índice mais alto registrado entre os países do mundo. É superior ao da África do Sul, por exemplo.

Por que houve uma mudança tão significativa?

Para medir a desigualdade, não usamos apenas os dados do censo do IBGE, no caso a PNAD. Também analisamos as informações do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). Com isso, avaliamos com mais precisão a renda dos mais ricos. Segundo a PNAD, cujos dados são obtidos por meio de entrevistas com a população, essas informações estão claramente subestimadas. Com o imposto de renda pessoal melhora muito, mesmo que não seja totalmente preciso.

E quais são as consequências da desigualdade nessas proporções?

Temos uma sociedade mais dividida do que imaginávamos. Isso, por si só, é um valor ruim, onde o bem-estar acaba próximo de zero. Além disso, entre os grupos mais desiguais, a criminalidade e a instabilidade política são maiores. A literatura prova isso.

E há enormes discrepâncias dentro das cidades.

SIM. Analisamos essas informações em Brasília. Quem mora no Lago Sul tem um patrimônio líquido médio de R$ 1,4 milhão por habitante. Em Itapuã, o valor é de R$ 1.100. Está a mil fatores de distância. Ou seja, quem mora em um ponto tem um patrimônio mil vezes maior do que quem mora em outro ponto da mesma cidade. Essa distância me chocou e é uma informação nova.

O estudo constatou que a cidade de São Paulo teve a maior queda de renda entre todas as capitais brasileiras durante a pandemia. Por que isso aconteceu?

Isso também me surpreendeu, mas eram dados muito robustos. Houve queda na renda média de 12,83% da população paulista. Em Aracajú, logo em seguida, a redução foi de 10,17% e em Fortaleza de 4,28%. Nós temos a informação, mas uma análise específica teria que ser feita para entender porque isso aconteceu. Só posso falar de hipóteses.

Quais são os principais?

Uma possibilidade é que a pandemia tenha levado ao isolamento social. O impacto desse tipo de medida em uma grande metrópole como São Paulo pode ter sido maior do que em outras cidades. Outro ponto diz respeito ao auxílio emergencial. Ajudou muito em uma pequena cidade do nordeste. Mas pode não ter tido o mesmo efeito em uma metrópole com uma população tão grande.

Como combater a desigualdade no Brasil?

Precisamos entender qual é a verdadeira desigualdade em áreas como habitação, educação e saúde. As ações do Estado também devem ser transparentes. Não estamos acostumados a avaliar políticas públicas. Monitoramos, mas não calculamos a eficácia de cada real gasto. Tão importante quanto investir é reduzir o desperdício. O Brasil tem muita ineficiência. Há 30 anos eu fiz um estudo, mostrando que o país não gastava pouco com saúde. gastei mal.

Sendo tão antigo e entrincheirado, é possível reverter esse desperdício?

É um processo. E se o político brasileiro puder, não vai querer ser avaliado. Mas é preciso entender que gastar com qualidade não é apenas uma questão de política macroeconômica, superávit fiscal ou combate à inflação. Isso é necessário por razões sociais.

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