Como serão os carnavais do futuro? O Sistema Baiana ecoou essa questão há mais de dez anos em suas primeiras gravações fonográficas. Nessa altura já estava claro que tudo já não fazia sentido, mas para que lado iria a multidão?
O tempo voa por si só, Exu matou um pássaro ontem com a pedra que só atirou hoje, e posso dizer que aquele Carnaval sufocou entre as cordas, espremido entre as estruturas, parou no tempo e no trânsito, enfim, hoje, no 2023 , deu seu último suspiro: morto. O que ainda existe é a sucata da panela, está no compasso da espera e no pós-prazo dos modelos antigos. O futuro faz seu caminho, e o Carnaval, que era avenida, virou cidade.
A Avenida Oceânica, em Barra-Ondina, dá o tom do Carnaval 2023 com Ivete Sangalo, transmitida ao vivo nacionalmente pela Globo e demais redes, Gilberto Gil, prefeito Bruno Reis, governador, Rei Momo, Deusa do Ébano, Veko do Cortejo, Sons by Gandhy, fogos de artifício e multidões. E a descendência de Ivete. Ele esquece. Nossa grande rua atual é energia, multidões, pipoca e cabines, luz e câmeras e ação. O Carnaval de Barra-Ondina é uma explosão anual de supernovas, pura emoção, palco, correria, a ânsia do Carnaval que quer aparecer, a fricção e a energia do que não cabe mais, mas não tem nem para onde ir, ninguém quer sair. O Sistema Baiana, Leo Santana, virou aquela viagem de cabeça para baixo, e o Axé da água salgada e da brisa fresca da noite tornam irresistível ficar por lá.
Salvador é maior que um caminho, não fica entre Barra e Ondina, e esse foi o convite que a prefeitura de Salvador fez este ano: não fique só na avenida, dê a volta na cidade, fique no centro. Num passeio entre Santo Antônio do Carmo e Campo Grande, toda a cultura do Brasil se manifesta em cada palco, em cada aparelhagem iluminada, na charanga e na fanfarra, nos bloquinhos e blocões, nos palcos de reggae e resistência, no padê do Gandhy, no privilégio de ver nascer uma estrela, como Melly, na anualmente renovada consagração do Olodum, o amanhecer com Ilê, os afros, a grande essência, o combustível primordial da nossa cultura é de origem africana, afro procissão chegando, a rua em chamas, Arto Lindsay cantava encantado.
E chegamos na Praça Castro Alves, a emoção da homenagem a Moraes, o nervosismo de Baco Exu do Blues ao tomar energia e rap no olhar do poeta. Essa praça, após um longo retorno de Saturno, volta ao epicentro de todo um ecossistema de alegria: um encontro de trios, pessoas, ritmos, amores, axés, afoxés e vida. Eu sou o Carnaval em todos os cantos do seu coração. Moraes, o Moraes, o dono da visão, o verdadeiro arquiteto da nossa festa, deixou em cada música uma dica do mapa da mina da alegria, um guia de passos de dança, uma receita de folia que transcende qualquer planejamento urbano, qualquer curadoria musical. “Não queremos ser olhado, queremos ser olhado”, ouvi no manifesto do Batekoo, que ocupava a praça Castro Alves, olhos negros cruéis, tentadores, da multidão sem cantor. A multidão canta, o calçamento da praça estremece e Salvador irradia dali.
O carnaval não é na avenida, o carnaval é a cidade. Cada canto é uma festa, cada olhar um ritmo, cada alegria um coração que bate mais quentinho. O futuro do Carnaval não está na avenida, está em cada esquina, em cada praça, bairro, bar, palco, festa, reunião, em cada risco e em cada suspiro da vida. Depois de 2 anos de dor e perda, parece ter ficado ainda mais claro que a alegria é um direito fundamental de todos, e que não há limites, não fica parado na avenida, Carnaval é alegria e é uma cultura que circula e brilha por toda a cidade, e é aqui que está o futuro do carnaval: por toda a cidade.
Pedro Tourinho é secretário de Cultura e Turismo de Salvador
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